sábado, 6 de setembro de 2014

A continuidade ou não dos dons espirituais



Li recentemente no jornal Brasil Presbiteriano – julho 2014,  excelente artigo do Rev. Leandro Antônio de Lima que é professor do Centro Presbiteriano de Pós-graduação Andrew Jumper e um dos pastores da Igreja Presbiteriana de Santo Amaro em São Paulo.   Veja o que eu li:
“A respeito dos dons espirituais – continuísmo ou cessacionísmo?
Os dons espirituais ainda estão em atividade hoje? Esse é um dos temas mais debatidos dos últimos tempos, desde  que o movimento pentecostal, no início do século 20, disse ter restaurado todos os dons espirituais dos tempos apostólicos. Quero destacar quatro aspectos nesse sentido, contribuindo para o debate.
          Inicialmente é preciso uma palavra sobre os termos. Continuísmo e cessacionísmo são termos limitados.Não conseguem expressar todo o significado bíblico a respeito dos dons e do modo divino de agir. Não só porque não são bíblicos, como também porque são reducionistas, e pretendem se impor sobre a Bíblia e, em última instância sobre o próprio Espírito que a inspirou. A Escritura diz que o Espírito concede os dons soberanamente, “conforme lhe apraz” (I Co 12.11), mas o continuísmo exige que ele continue operando todos os mesmos sinais de outrora, enquanto que o cessacionismo exige que ele não os realize mais. E o fato é que o Espírito Santo não disse nas Escrituras, de uma forma clara e inequívoca nem uma coisa e nem outra. Ao impor a opinião pessoal sobre a soberania do Espírito, ambos os posicionamentos correm o risco de apagar o Espírito (I Ts 5.19). O continuismo, por se esquecer que há um critério para julgar as manifestações espirituais (I Ts 5.21), e o cessacionismo por correr o risco de desprezar o que Deus pode fazer, limitando-o em suas ações, em aspectos em que o próprio Deus não se limitou (I Ts 5.20).
          Em segundo lugar, em linhas gerais, os reformados crêem que os dons relacionais cessaram, mas os de ministério (serviço) não. Calvino, ao comentar sobre a atuação soberana do Espírito concedendo dons à igreja, diz: “O Espírito de Deus, portanto, distribui esses dons entre nós, a fim de concentrarmos toda a nossa contribuição visando ao bem comum” (Comentário I Co 12.11). Ou seja, Calvino cria que o Espírito ainda estava concedendo dons à igreja. Por outro lado, o Reformador entendia que os dons revelacionais e curas haviam desaparecido ainda no tempo dos apóstolos.  De fato, podemos dizer que  os dons que traziam nova  revelação cessaram porque a Revelação se completou em Jesus Cristo e foi registrada na Escritura, à qual, nada se acrescentará. E podemos afirmar que os dons miraculosos  cessaram por causa da própria evidência do Novo Testamento que aponta para o desaparecimento deles no final do período apostólico. No caso do dom de curar,é interessante que Paulo não parece mais evidenciá-lo no final de seu ministério, quando em vez de curar Timóteo, mandou que ele bebesse vinho misturado com água por causa de suas constantes enfermidades de estômago ( I Tm 5.23). E também, em ocasião posterior, em vez de curar Tr´fimo, diz que deixou-o doente em  Mileto (II Tm 4.20). Sem dúvida, essa foi uma postura bem diferente daquela dos primeiros dias da pregação do apóstolo, quando os milagres de curas aconteciam de forma abundante (At 14. 8-10), 18.11). Calvino cria que diversos dons e ofícios eram temporários, pois tinham a função de lançar os fundamentos da igreja (Ef 2.20, ver seu comentário de I Co 12.28). Isso não significa dizer que  Deus não realiza milagres de curas hoje. Se alguém negar a existência de milagres de curas estaria negando a própria existência de Deus. O ponto específico é a capacidade de uma pessoa ter o dom de curar. Uma coisa é alguém orar a Deus pela cura de alguém e Deus responder atendendo. Outra é a própria pessoa dizer “em nome de Jesus, levanta e anda”, e por um poder de curar que lhe foi concedido isso acontecer. Entendo que a primeira acontece hoje, mas a segunda não, pois era privilégio daqueles que conheceram Jesus pessoalmente.
          Parece de fato lógico pensar que os dons revelacionais não  estão mais em atividade no mundo justamente porque Deus já revelou tudo o que era necessário para nossa salvação e aperfeiçoamento espiritual, e essas coisas estão registradas na Bíblia (II Tm 3.16-17). Tudo o que alguém precisa para ser “perfeito e perfeitamente habilitado para boa obra” já foi registrado na Escritura (II Tm 3.17). Então, qual seria o sentido de Deus continuar revelando mais coisas assim? Por isso, quando continuarmos buscando novas formas de revelação normativa, de certo modo estamos dizendo que o registro bíblico é insuficiente, e essa, sem dúvida é uma atitude perigosa. Mas isso não significa dizer que Deus parou de falar. Os reformados nunca defenderam essa posição. A teologia reformada sustenta, por exemplo, a chamada Revelação Geral. Significa dizer que Deus se revela por meio da natureza (Sl 19, Rm 1.18ss). Mas aqui chegamos ao ponto crucial. Nenhum reformado busca a revelação de Deus diretamente na natureza, antes observa a natureza através dos “óculos” das Escrituras. Portanto, terceiro lugar, a Escritura é o critério final, justamente por tem o poder de julgar todas as demais maneiras de ouvirmos a voz de Deus. Parece que é justamente isso o que Paulo tem em mente quando diz “julgai todas as coisas, retende o que é bom”, justamente num contexto de “não desprezar profecias” (II Ts 5.19-21)
          Segundo os reformados da Confissão de Fé de Westminster, uma vez que a Escritura está completa,  “cessaram aqueles antigos modos de Deus revelar sua vontade ao seu povo” (I.1), e o critério último pelo qual  todas as disputas teológicas precisam ser solucionadas é “o Espírito Santo falando nas Escrituras” (I,10. Os reformados criam em”iluminação espiritual”, ou seja, que Deus pode sim falar comigo hoje. Ele pode nos orientar nas decisões do dia a dia, mas não fará isso independentemente da  Bíblia. Mesmo que Deus quisesse mandar um anjo falar comigo, ou um sonho, ou a palavra iluminada de um crente fiel, nada disso seria o critério final para eu saber qual é a vontade dele, até porque Paulo disse  que se um anjo  viesse falar aos gálatas um evangelho diferente daquele já revelado  deveria ser considerado maldito (Gl 1.8). O critério é a Escritura. Por meio dela interpretamos o modo como Deus fala diretamente ao nosso coração ou através de algum crente fiel. Estritamente, portanto, jamais deveríamos chamar esse”falar de Deus” de “nova revelação”, pois, se o fosse, o texto bíblico não poderia ser juiz dele. Se a Escritura é juiz é porque esse falar de Deus não é novo, mas apenas um desdobramento daquilo que a Escritura já disse. Por isso o termo correto é iluminação.

          Concluo dizendo que não creio em “novas revelações normativas”, pois se acreditasse teria de dizer que a Bíblia ainda está sendo escrita. Creio que Deus “fala”. O Espírito Santo habita o crente e o dirige, e ainda lhe deu um critério infalível para saber quando de fato ele está falando: a Escritura. Portanto, falar em ser estritamente cessacionista ou continuista é um reducionismo. Alguns dons cessaram, outros não conforme a vontade soberana do Espírito. Dons revelacionais eram temporários e cessaram. Dons ministeriais continuam em ação. Acima de tudo, sejamos criteriosos. Não queiramos impor limitações para Deus, mas não nos esqueçamos dos limites que ele mesmo impôs: aquilo que ele já revelou e ordenou que fosse registrado na Escritura.